O
noivado aconteceu de forma inesperada e fora a maior surpresa para todo o mundo
saber que ela tinha ficado noiva. A professora de ciências, no inicio, nem
acreditou. Mas ninguém se surpreendera tanto quando ela mesma. Tinha trinta
anos. Basil vinte e cinco. Foi um milagre, simplesmente um milagre, ouvi-lo
dizer quando voltavam da igreja naquela noite escura:
-
Olhe, não sei bem como, mas me apaixonei por você. E ele agarrou a ponta da sua
estola de plumas de avestruz.
Ele
era muito dedicado, outro dia escrevera-lhe uma carta todinha sobre uma estante
de carvalho que ele havia comprado para os “nossos” livros e sobre uma “linda
chapeleirazinha” para o hall, que ele tinha visto, “uma graça, com uma coruja
esculpida no cabide, segurando em suas garras três escovas de chapéu”. Ela rira
tanto com aquilo! Só mesmo um homem pra achar que alguém precisa de três
escovas de chapéu!
Da
última vez que veio vê-la, Basil trazia uma rosa na lapela. Como ficava bonito
com aquele terno azul-claro e aquela rosa vermelho-escura! E ele sabia que
ficava. Não podia deixar de saber. Primeiro, ele passou a mão nos cabelos;
depois alisou o bigodinho. Seus dentes brilharam quando ele sorriu. Iria jantar
com a mulher do diretor da escola.
- A
mulher do diretor da escola está sempre me convidando para jantar. É uma
chatice. Nunca tenho uma noite para mim, naquele lugar. Reclamou.
- E
você não pode recusar o convite?
-
Ora, não fica bem, para uma pessoa da minha posição, ser anti-social.
Ela
o compreendia. Até a noite anterior, quando ele enviou-lhe uma carta rompendo o
noivado. Ela havia sido apunhalada no coração por aquela carta...
“...
Sinto cada vez mais fortemente que o nosso casamento seria um erro. Não é que
eu não te ame. Eu te amo tanto quanto sou capaz de amar uma mulher. Mas, para
dizer a verdade, cheguei à conclusão de que não fui feito para me casar e a
ideia de constituir família me dá nada mais, nada menos que...” A palavra
“aversão” estava levemente riscada e, acima dela, ele escrevera – “pesar”.
Não
podia compreender aquela atitude, seu coração estava dilacerado, mas precisava
ir ao trabalho. Pôs a roupa mais sombria do seu guarda roupa, seu humor estava
negro.
Com
o desespero – um desespero rude, lancinante – cravado no fundo do coração, como
um punhal cruel. Miss Meadows, de barrete e toga, batuta na mão, caminhava
pelos frios corredores que levavam à sala de música. Meninas de todas as
idades, coradas com o ar gelado e cheias daquela alegre excitação que dá ir à
escola numa bela manhã de outono, corriam, davam pulos, numa grande agitação.
Das salas de aula vinha um zunido ligeiro e abafado de vozes. Soou uma sineta,
uma voz parecendo um pio de passarinho gritou:
-
Muriel!
De
repente, veio das escadas um barulhão de alguma coisa indo ao chão. Uma das
meninas havia deixado cair os alteres.
A
professora de ciências deteve Miss Meadows.
-
Bom di-i-a – exclamou com a sua voz melosa e afetada, sempre arrastada. – Que frio,
hem? Até parece o i-in-verno.
Miss
Meadows, apertando o punhal da dor, fitou com ódio a professora de Ciências.
Tudo nela era meloso, descorado como mel. A gente não se espantaria nada se
visse uma abelha ser pega no emaralhado daqueles seus cabelos louros.
-
Está um gelo – replicou Miss Meadows secamente.
A
outra sorriuo seu sorriso açucarado.
-
Você parece estar ge-e-lada – disse.
Os
olhos azuis se arregalaram. Um brilho zombeteiro bruxuleou neles. ( Será qie
ela percebeu alguma coisa?)
-
Ora, também não é tanto assim – tornou Miss Meadows, retribuindo o sorriso da professora
de Ciências com uma breve careta e seguindo o seu caminho...
O
quarto, o quinto e o sexto anos estavam reunidos na sala de música. Faziam uma
algazarra ensurdecedora. No estrado, junto do piano, Mary Beazley a preferida
de Miss Meadows, que tocava os acompanhamentos, estava ajustando o banquinho.
Ao ver Miss Meadows, gritou um “Psiu, meninas!”, para avisar as outras. Miss
Meadows, mãos enfiadas nas mangas, a batuta debaixo do braço, atravessou a sala
a passos largos pelo corredor entre carteiras, subiu os degraus do estrado,
virou-se bruscamente, pegou a estante de música, fincou-a diante de si, deu
duas batidinhas secas a pedir silêncio.
-
Silêncio, por favor! Imediatamente!
Sem
encarar ninguém, seus olhos percorreram aquele mar de blusas de flanela
coloridas, de caras e mãos rosadas e irrequietas, de laços parecidos com
borboletas no cabelo e livros de música abertos, que se agitavam. Ela sabia
perfeitamente o que estavam pensando: “A Meady está uma fera!!” Que pensem!
Suas pálpebras estremeceram. Levantou agressivamente a cabeça, desafiando-as.
Que importância poderia ter os pensamentos daquelas criaturas para alguém que
estava ali, esvaindo-se em sangue, apunhalada no coração – no coração! – por
aquela carta...
Basil!
Miss Meadows aproximou-se lentamente do piano. E Mary Beazley, que estava
esperando aquele momento, inclinou-se para a frente. Seus cabelos cacheados
caíram sobre o seu rosto, enquanto ela murmurava um “bom dia, Miss Meadows”, E
se curvou, estendendo à professora um lindo crisântemo amarelo. Esse pequeno
ritual da flor vinha sendo repetido há tempos, pelos menos um ano letivo e
meio. Fazia tanto parte da aula, quanto abrir o piano. Mas, naquela manhã, em
vez de pegar a flor em vez de enfiá-la no cinto inclinando-se para Mary e
dizendo “Obrigada, Mary, que linda! Abram na página trinta e dois”, qual não
foi o horror de Mary quando Miss Meadows
ignorou totalmente o crisântemo, não respondeu ao seu cumprimento e disse
com uma voz glacial:
-
Página catorze, por favor. Marquem bem os acentos.
Terríveis
minutos! Mary corou a ponto das lágrimas encherem seus olhos, mas Miss Meadows
voltara para junto da estante. A voz dela retiniu na sala.
-
Página catorze. Vamos começar pela página catorze. “Um lamento” A esta altura,
vocês já devem estar cansadas de sabê-la. Cantem com uma simplicidade, batendo
o compasso com a mão esquerda.
Ergueu
a batuta. Deu duas batidas na estante. Mary atacou o acorde inicial, todas as
mãos esquerdas começaram a agitar-se no ar e as vozes juvenis e melancólicas
ressoaram em uníssono:
Logo! Oh, as rosas do
prazer logo fenecem!
Já cede o outono à
tristeza da invernia.
Logo! Logo ao atento
ouvido se esvaneceram,
As notas breves da
alegre melodia.
Meu
Deus, haveria coisa mais trágica do que aquele lamento? Cada nota erfa um
suspiro, um soluço, um gemido terrivelmente triste. Miss Meadows, levantando os
braços na larga toga, principiou a reger com as duas mãos. E a lembrança da
carta surgia “...Sinto cada vez mais fortemente que o nosso casamento seria um
erro...” ela marcou o compasso. E as vozes gritaram: Logo! Logo ao atento
ouvido. Que será que dera nele para
escrever uma carta assim? O que poderia ter levado Basil a escrever aquela
carta? Não dava para entender.
-
Mais uma vez! – disse Miss Meadows. – Dessa vez, com todas as vozes. Sem
expressão ainda.
Logo! Oh, as rosas do prazer. Com
a voz melancólica dos contraltos entrando, ninguém podia deixar de se arrepiar.
Logo fenecem! As breves notas da alegre
melodia, gemeram as vozes. Do outro lado das janelas altas e estreitas, os
salgueiros balançavam ao vento. Tinham perdido quase todas as folhas. As poucas
que ainda não haviam caído debatiam-se
como peixes fisgados num anzol. “... Não fui feito para me casar...” As vozes
estava caladas, o piano esperando.
-
Muito bem – disse Miss Meadows, mas ainda num tom esquisito, tão ríspido, que
as meninas mais moças ficaram com medo mesmo.
-
Agora que já sabemos, vamos cantar com expressão. O máximo de expressão que
vocês puderem. Pensem na letra, meninas! Usem a imaginação! Logo! Oh, as rosas do prazer fenecem – berrou Miss Meadows. – Isso tem de
sair como um lamento, um lamento alto, fortíssimo. Depois, no segundo verso, a tristeza da invernia, façam tristeza soar como se um vento frio
estivesse soprando através dela. Triste-e-za!
– fez ela, com uma voz medonha, que Mary Beazley, sentada no banquinho do
piano, sentiu um calafrio na espinha...
- O
terceiro verso deve ir num crescendo. Logo!
Logo ao atento ouvido. Que se interrompe na primeira palavra do último
verso: as breves. E na palavra notas vocês devem começar a morrer... a
decrescer... até que alegre melodia não
seja mais que um ligeiro sussurro... Podem diminuir o andamento à vontade no
último verso. Atenção!
Outra
vez duas pancadinhas na estante. Outra vez ergueu os braços. Logo! Oh, as rosas. “... e a ideia de
constituir família me dá nada mais, nada menos que aversão...” Aversão,
era o que ele tinha escrito! Era a mesma
coisa que dizer que o noivado deles estava definitivamente desmanchado.
Desmanchado! O noivado deles!
-
Repitam! Repitam! – ordenou Miss Meadows. – Mais expressão, meninas! Mais uma
vez!
Logo! Oh, as rosas do prazer logo
fenecem! As meninas mais velhas eatvam vermelhas; algumas mais
moças puseram-se a chorar. Grossos pingos de chuva batiam nas janelas, e
podiam-se ouvir os salgueiros murmurando: “...não é que eu não te ame...”
-
Mas, querido, se você me ama – pensava Miss Meadows -, para mim não tem a menor
importância quanto. Me ame só um pouquinho até, se você quiser.”
Ms
ela sabia que Basil não a amava. A ponto de sequer ter-se dado ao trabalho de
riscar aquela palavra “aversão” de maneira que ela não a pudesse ler. Já cede o outono à tristeza da invernia. Ela
ia ter que sair da escola, também. Nunca mais poderia encarar a professora de
Ciências ou as suas alunas, quando todos ficassem sabendo. Ia ter que fugir
para algum lugar. Se esvanecem. As
vozes começavam a morrer, a se esvanecer, a não ser mais que um sussurro... a
sumir...
De
repente, a porta de abriu. Uma garotinha de azul adiantou-se nervosamente entre
as carteiras, de cabeça baixa, mordendo os lábios e girando a pulseira de prata
no pulsinho rosado. Subiu os degraus do estrado e parou diante de Miss Meadows.
-
Que foi, Mônica?
- Dá
licença, Miss Meadows – disse a garotinha, ofegante. – Miss Wyatt pediu que a
senhora vá até diretoria.
-
Está bem – respondeu Miss Meadows. E pediu às meninas: - Prometam-me que
falarão em voz baixa enquanto eu estiver ausente.
Elas
estavam prostradas demais para fazer outra coisa. A maioria delas, com o nariz
fungando.
Nos
corredores silenciosos e vazios, ecoavam os passos de Miss Meadows. A diretora
estava sentada à sua mesa. Demorou um pouco paraà sua mesa. Demorou um pouco
para erguer os olhos. Como sempre, tentava soltar os óculos, que tinham ficado
presos na sua gravata rendada.
-
Sente-se, Miss Meadows – disse ela delicadamente. Pegou em seguida um envelope
cor-de-rosa no seu mata-borrão. – Mandei chama-la, por que acabou de chegar
este telegrama para a senhora.
- Um
telegrama para mim, Miss Wyatt?
Basil
se suicidou!, pensou Miss Meadows. A mão dela precipitou-se para o telegrama,
mas Miss Wyatt reteve-o ainda um momento.
-
Espero que não sejam más notícias – disse ela, não mais que delicadamente.
Miss
Meadows abriu o telegrama.
“Não
dê bola a carta devia estar maluco. Comprei a chapeleira hoje. – Basil”, leu
ela. Não conseguia desgrudar os olhos do telegrama.
-
Espero que não seja nada grave – disse Miss Wyatt, inclinando-se para a frente.
-
Não, não, obrigada, Miss Wyatt – enrubesceu Miss Meadows. – Não é nada grave.
É... – e ela deu um risinho de desculpa – é do meu noivo, dizendo que ...
dizendo que...
Houve
uma pausa.
-
Sei, sei – disse Miss Wyatt.
Outra
pausa. Depois:
- A
senhora tem mais quinze minutos de aula, não é mesmo, Miss Meadows?
- É
sim, senhora.
Ela
levantou-se. Quase correu para a porta.
- Um
minutinho, por favor, Miss Meadows – disse Miss Wyatt. – Queria lhe dizer que
não gosto que minhas professoras recebem telegramas nas horas de aula, a não
ser em casos extremamente graves: morte, um acidente, coisa assim – explicou
Miss Wyatt. – As boas notícias, Miss Meadows, sempre podem esperar, a senhora
sabe.
Nas
asas da esperança, do amor, da alegria, Miss Meadows voou de volta para a sala
de música, atravessou-a, subiu no estrado, foi para junto do piano.
-
Página trinta e dois, Mary – disse. – Página trinta e dois.
E,
pegando o crisântemo amarelo, aproximou-o dos lábios para ocultar o sorriso.
Voltou-se, então, para as alunas, bateu vivamente com a batuta:
-
Página trinta e dois, meninas! Página Trinta e dois!
Trouxemos hoje
braçadas de flores
E cestas de frutas, e
fitas também,
Para felicitar...
-
Parem! Parem! – exclamou Miss Meadows. – Está horrível! Está pavoroso! – deu um
sorriso radiante para as alunas. – O que é que há com vocês? Pensem, meninas,
pensem no que vocês estão cantando! Usem a imaginação. Braçadas de flores. E cestas de frutas, e fitas também. E felicitar. – Miss
Meadows parou. – Não façam estas caras de enterro, meninas! Esta música tem de
soar calorosa, cheia de alegria, viva. Felicitar.
Mais uma vez. Andem. Todas juntas. Vamos!
Desta
vez, a voz de Miss Meadows cobriu as outras – cheia, profunda, ardente,
expressiva.
A
tempestade havia passado.
Inspirado no conto Aula de Canto.
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